De vez em quando a coisa trava. A inspiração não chega, ou
melhor, chega e vai embora com a próxima expiração. Não fosse assim, cairíamos
duros e mesmo então nenhuma ideia seria soprada nos nossos
ouvidos. Particularmente fico torcendo para que seja soprada
no meu ouvido direito, já que o esquerdo não é lá grande
coisa. Fato é que eu estava raspando o fundo do tacho para encontrar um
jeito de desenvolver essa postagem.
Daí eu estava no Youtube ouvindo (bem,
deveria estar escrevendo, mas confesso que também estava vendo)
o Concerto para Violino em Mi menor,
op.64 de Mendelssohn. O solista era um menino polonês de 11 anos
chamado Wiktor Dziedzic. Se você não é polonês, faça como eu: copie o nome,
coloque no Google Tradutor e peça para a mocinha ler para você. A língua
polonesa é preponderantemente consonantal e você vai ficar
com os beiços secos de tanto soprar através deles. Bem, o
tal Wiktor passou 14 minutos esfregando a crina dos cavalos naquelas
quatro cordinhas com uma serenidade e um talento espantosos. Nem
partitura ele lia. Tocou o concerto —incluindo algumas partes bem complexas e
exigentes — de memória. Ao final, ganhou um abraço da maestrina, um gostoso
beijo da jovem e belíssima spalla da orquestra, meteu o
violino debaixo do braço e foi-se palco afora.
Talvez os orgulhosos tata e ma musia o
estivesses esperando na coxia para levá-lo até a dom dos Dziedzic.
Fariam um lanche, o pequeno Wiktor jogaria videogame ou veria seu
seriado preferido, tomaria um banho relaxante e se meteria na
cama. Antes de pegar no sono lembraria com satisfação de alguns momentos
de sua performance naquela tarde. Mas logo estaria dormindo tranquilamente
o sono gostoso daqueles que dedicam tempo e amor ao talento que
receberam.
Pois é assim, há que
haver um ponto por onde começar. Quer seja no limiar da adolescência, como
ocorre ao lourinho violinista Wiktor, ou já entrado na meia
idade como José Saramago, autor que obteve grande reconhecimento de
público e crítica quando as juntas dos dedos andavam grossas. Não há tempo
preciso para desabrochar. Há, por certo, muito romantismo da parte de quem vê
um jovem talento despontando. Em geral o distinto público se convence de que
aquele prodígio brotou do absoluto nada, como por milagre, através
de um toque sutil de uma musa pródiga e temperamental. A mídia tem
sua parte de responsabilidade (e de gordos lucros) ao criar esses “fenômenos”
das artes. Nunca se viu tanta genialidade como nesses tempos que vivemos.
Ficamos pasmos ao ver nas redes sociais crianças de 3, 4, 5 e não mais que 7
anos dominando teclados, sopros e cordas com a facilidade que teriam para
chupar um pirulito. Logo, logo, uma grávida qualquer, por
certo muito orgulhosa, vai engolir com justa dificuldade um
piano de cauda para que seu bebê possa dar asas
ao talento demonstrado na tela da
ultrassonografia. É muito fácil e proveitoso para a
criação de mitos, ignorar os anos de dedicação e estudo às letras, à
música e às artes plásticas que preparam os tais
prodígios para se tornarem profissionais. A mídia,
influenciadores e admiradores mal informados preferem esquecer a decolagem,
exaltar os altos voos e torcer para que o pouso seja glorioso. Há talentos
inegáveis circulando por aí, mas como dizia o comprovadamente talentoso Baden Powell: “Tem
músico que é como sorvete. Se colocar debaixo do sol, derrete”.
A regra de nosso
grande violonista vale para todas as artes. Na literatura ela se aplica
com determinada sutileza, já que o leitor tem que buscar o trabalho do artista.
O conteúdo dos livros não se escancara em traços e cores pelas paredes ou nos
entram sem cerimônias pelos ouvidos. Escrever exige uma certa experiência
de vida, um trato com o tempo, para que a musa sopre pelos auriculares do
escritor algo que faça sentido, que tenha traços de beleza e enganche o
peixe-leitor pelas vírgulas-anzóis. E olha que é uma pescaria que exige luta e
vigor para ser vencida. Ainda que a isca seja qualificada, não há garantias de
que o peixe se deixe vencer com facilidade. Não raro escapa-se na virada da
página. Portanto o escritor-pescador precisa perseverar no seu mister,
aprimorando-o com o passar do tempo e da necessária vivência.
Mesmo os grandes
precisam desse prelúdio das iscas perdidas. Foi assim que encontrei uma isca
lançada por Marguerite Yourcenar. Uma pequena obra publicada
em 1929, quando a autora tinha apenas 24 anos foi o ponto de partida
de uma carreira longa e produtiva. Caso Yourcenar tivesse abandonado
as letras após o lançamento desse seu primeiro romance, muito provavelmente
poucos se dedicariam à leitura de Alexis ou o Tratado
do Vão Combate. A escritora que
Marguerite Yourcenar se tornou ao longo das
décadas instigou críticos, biógrafos e leitores a buscar no passado as
obras iniciais, aquelas que foram fruto de uma autora que tateava à procura de
um caminho, de uma assinatura, de uma personalidade literária. Por mais talento
e formação que se tenha — e a jovem Marguerite teve-a de excelente nível — todo
início de carreira é marcado por incertezas e titubeios. Ainda que o autor seja
capaz de absorver o espírito de seu tempo e as narrativas lhe rocem as
ventas, há que encontrar o melhor modo de dizer, definir o estilo que lhe é
mais orgânico, conhecer os seus personagens como se dividisse a própria alma
com eles. Muita vez é na maturidade que se alcança essa integração
completa e natural entre o que a mente cria e o que exige a folha em branco. As
mãos gaguejam, parece que as musas lançam paralelepípedos sobre o talento que o
escritor julga ter, mas do qual sempre duvidam as primeiras páginas.
Uma medonha incerteza assola a ideia que parecia genial, original, admirável,
verdadeira. Aquilo que foi visto, ouvido, contado, anotado começa a se
dissolver sobre a celulose. As histórias que estavam praticamente terminadas
começam a desfilar à frente do autor como
aqueles inatingíveis patinhos na barraca de tiro ao alvo. Tiro
após tiro a história escapa, mergulha atrás do balcão e retorna com a mesma
expressão de deboche pelos fracassados esforços de quem escreve. Mas num belo e
inspirado dia o autor conquista seu prêmio. Não dos grandes, daqueles épicos e
cheios de brilho, mas aquele que ele mesmo se dá quando consegue ir do “era uma
vez” até o sofrido “assim termina essa história”.
Mas como uma Yourcenar de
24 anos poderia iniciar sua carreira? Na verdade, Alexis ou O
Tratado do Vão Combate era a segunda obra da autora, mas a primeira a
ser publicada, em 1929. Nada mais é que uma carta, uma longuíssima carta que
Alexis dirige à sua esposa Mônica. Um texto angustiado, com pouquíssimos momentos
de janelas abertas, pois tudo parece se passar em interiores sombrios,
silenciosos e muita vez, opressivos. Alexis é um músico, um pianista, mas
sequer em momentos em que descreve sua performance sobre as teclas parece
haver luminosidade, brilho ou encantamento. No entanto o piano é sua
libertação, sua fuga para um mundo menos cinza do que aquele que o envolveu
desde a infância, atormentou-o pela adolescência, empurrou-o aos tropeços pela
vida adulta e, por fim, arrastou-o para um casamento que se anunciava
fracassado.
E o que Alexis
comunicaria à sua esposa em carta tão extensa? Nos dias atuais qualquer
pessoa não precisaria mais do que poucas linhas num aplicativo de mensagens
para expor o que Alexis tentou dizer em mais de 100 páginas: sou homossexual.
Todavia, a enganosa facilidade da comunicação não se coaduna com a dificuldade
da decisão. No passado, e ainda hoje, o drama da exposição, da rejeição e do
preconceito é obscuro demais para ser totalmente iluminado
por uma suposta liberdade de expressão. Alexis tem imensa dificuldade
para escancarar a sua verdade, pois crescendo numa família conservadora e pouco
disposta aos contatos afetivos, ele sufoca no silêncio e caminha como se
esperasse acabar o efeito da anestesia sobre seus sentidos. Seja como for,
veladamente ele se define, pesadamente ele escorre para fora do cinza
familiar, angustiosamente ele tenta agradar a algum tipo de esperado
comportamento e lastimavelmente se deixa atrair para uma união
estéril. Uma relação tão sem sentido que ao fim de sua
carta Alexis declara: “Peço-te humildemente, o mais humildemente
possível, perdão, não por te deixar, mas por ter ficado por tanto tempo”.
Em nenhum momento
ele diz isso claramente. Usa uma linguagem cheia de subterfúgios, desvios,
contornos, como se caminhasse por um terreno desconhecido e usasse as palavras
às apalpadelas, tanto para si como para a destinatária da carta. O leitor que
acompanha sua narrativa fica em dúvida se Mônica será capaz de
compreender, em toda a sua expressão, o que o marido que se despede quer lhe
revelar. Ele é tão reticente que fica-se a pensar: será que essa
mulher teve uma relação mais íntima com o signatário da carta? Parece que
sim, mas isso é totalmente irrelevante. Alexis sempre soube o que era, ou descobriu
muito cedo o que era, e caminhou para um casamento onde poderia cumprir
todas as exigências de sua época e de sua posição social. Menos uma. Não houve um choque, nem
uma repulsa, apenas um desencontro, alguma coisa de irreconciliável que
fez com que tudo mais se transformasse num desejo asfixiado.
Ao relançar a
obra, no começo dos anos 1960, Marguerite Yourcenar escreveu
no prefácio: “Se bem que o assunto, considerado ilícito
antigamente, tenha sido abundantemente tratado em nossos dias e inclusive
explorado pela literatura, tendo adquirido, dessa forma, uma espécie
de meio-direito de cidadania, parece, com efeito, que o problema
íntimo de Alexis não é hoje menos angustiante ou menos secreto do que
outrora. Parece também que a facilidade relativa (tão diferente da verdadeira
liberdade), que reina sobre o assunto em alguns meios muito
restritos, não tenha feito outra coisa senão criar no público em geral um
mal-entendido, ou uma prevenção a mais. Basta olharmos atentamente em torno de
nós para nos apercebermos de que o drama de Alexis e Mônica não cessou de ser
vivido e continuará a sê-lo sem dúvida, enquanto o mundo das
realidades sensuais permanecer cerceado e castrado por proibições”. E
mais à frente: “Os costumes, diga-se o que quiser, mudaram
muito pouco. Pelo que concluímos que a ação central deste romance não
envelheceu muito”.
A própria autora diz
com extrema clareza aquilo que seu personagem tangencia com tanto cuidado.
Então, que mudança ocorreu entre aquela escritora estreante que pariu Alexis e
a autora madura que, passados mais de trinta anos, o definiu? Obviamente,
tempo. E com ele experiência, coragem, firmeza, estilo e conhecimento profundo
a respeito do ser humano, a matéria-prima de todo grande autor. Há no
texto da jovem Marguerite Yourcenar trechos que evidenciam sua
capacidade de narrar uma história com competência, ainda que
fosse uma carta infindável que, por descuido ou desinteresse do leitor, poderia
ser esquecida no fundo de uma gaveta.
Cá entre nós,
esquecer na gaveta uma carta de mais de cem páginas é coisa para
alienados. Em tempos passados eu escrevia longas cartas para amigos.
Gostava, e ainda gosto, do ato de escrever no papel, aquele ato bem pensado,
que nos dá tempo de refletir, corrigir, reescrever ou desistir de enviar. Era
coisa de cinco, dez páginas ou pouco mais. Nada que se compare ao fenômeno
que saiu das mãos de Alexis. Mesmo assim, coisa decepcionante, alguns
preguiçosos fraternais me pediam para enviar o conteúdo através de correio
eletrônico. Todavia o fato que frustrou de vez meu ímpeto missivista ocorreu
numa papelaria. Solicitei a um jovem atendente que me vendesse um bloco de
cartas. O rapaz me olhou incrédulo, como se eu houvesse lhe pedido as tábuas
que Moisés recebeu no Monte Sinai. Ele não tinha a mais vaga ideia do que fosse
um simples bloco de cartas. Seu espanto era tão flagrante que eu mesmo passei a
duvidar da existência daquele objeto. Felizmente um supervisor de mais idade, a
quem o jovem se reportou, puxou de uma prateleira pouco
visitada aquelas vinte páginas pautadas. Custou-me uns poucos reais e
creio que permanece virgem e esquecido em alguma gaveta. A cada mudança eu o
reencontro e penso em jogá-lo no lixo. Mas creio sinceramente que ainda haverá
um dia em que encontrarei uso para ele.
Talvez seja com essa
mesma esperança que os autores, sejam eles iniciantes ou experientes, continuem
a se arriscar no mundo da literatura. A jovem
Marguerite Yourcenar colocou em Alexis ou O Tratado do Vão
Combate o melhor de seu entendimento do mundo. Por todo o texto semeou
qualidades que frutificariam ao longo de sua extensa e produtiva carreira
literária. Há, por certo, um ponto onde a obra começa a se narrar
para a autora, e ela, com toda a insegurança dos novatos, mede
dedos, titubeia e duvida. Mas não esmorece. Caso o fizesse, a sua própria
história como escritora e a história dos personagens que precisam falar
através de seus livros se fecharia em reticências. Felizmente para nós
leitores, grandes autores sabem colocar um ponto final em suas grandes obras.
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